sábado, 7 de agosto de 2010

TEXTOS DE REFERÊNCIA PARA NOSSOS ESTUDOS - TEXTO "1": AUTORA: PROF. MARLENE RIBEIRO (UFRGS)

Uma escola básica do campo como condição estratégica para o desenvolvimento sustentável
Marlene Ribeiro – FACED/UFRGS*

Falar de uma escola básica do campo como condição estratégica para o desenvolvimento sustentável é falar de história, de vida e de luta, ou de lutas empreendidas pelos movimentos sociais populares . Comecemos pela história para terminar pela luta, que é uma luta pela vida, por mais vida.
Seguindo essa pista, pergunto: o que tem sido o desenvolvimento para os trabalhadores e trabalhadoras, para os pobres, para os negros, para os índios, ou seja, para as camadas populares? Chegando mais perto, indago: o que tem significado o desenvolvimento, entendido como "modernização da agricultura", para os agricultores e agricultoras brasileiros?
Estamos percebendo que o desenvolvimento sustentável começa a fazer parte da pauta de discussões de organismos internacionais como o Banco Mundial. Por que será que esses organismos, que sempre se preocuparam apenas com o aumento da produtividade e diminuição dos custos, isto é, com seus lucros, estão agora interessados em um desenvolvimento que seja sustentável? Não é para desconfiar? Será que este desenvolvimento sustentável, pretendido pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) , é o mesmo pelo qual lutam os movimentos sociais populares reunidos nesta Conferência? Afinal, o que é o desenvolvimento sustentável, ou melhor, o desenvolvimento de uma agricultura sustentável, e qual o papel estratégico que uma escola básica do campo desempenha neste desenvolvimento?
A ideologia do progresso, cunhada no século XVIII e associada às teses evolucionistas de que os homens evoluem de um estado primitivo para o estágio civilizado, prestou-se admiravelmente à expansão do capitalismo, que submeteu e colonizou povos da África, da Ásia e das Américas, sendo que, no Brasil, resultou no extermínio de inúmeros povos indígenas e na escravização de negros africanos nos engenhos de açúcar e fazendas de café. Esse "progresso" significou uma produção de açúcar, café, minérios e drogas do sertão, voltada para a exportação, exigindo a ocupação da terra de uma forma que gerou imensos latifúndios em todas as regiões .
Mais próximo da nossa época, conhecemos os resultados da chamada "revolução verde" , outra ideologia de desenvolvimento que começou a vigorar nos anos pós-guerra, estendendo-se até os anos 70 do século XX. Coincide o aparecimento desta ideologia, na América Latina, com um período no qual muitos países, inclusive o Brasil, foram governados por ditaduras militares apoiadas pelos EUA, ditaduras cujo propósito era sufocar os movimentos sociais populares, principalmente os que lutavam pela Reforma Agrária.
O projeto capitalista de desenvolvimento rural chamado "revolução verde" baseava-se na idéia de que bastava mudar o padrão tecnológico da agricultura brasileira para melhorar naturalmente o nível de vida dos trabalhadores e trabalhadoras do campo . Este modelo, também identificado como "modernização da agricultura", estava associado ao projeto de desenvolvimento urbano-industrial de "substituição de importações", que se concretizou através de um intenso processo de industrialização implementado nas principais cidades brasileiras. Esses dois modelos – a "revolução verde" e a "substituição de importações" – significaram, na verdade, o processo de expansão do capitalismo no Brasil, em dois movimentos articulados. De um lado, criaram-se indústrias, na sua maior parte dependentes de matérias primas importadas, desenraizadas, descoladas da nossa produção agrícola; de outro, criava-se a necessidade de um mercado de força de trabalho para as fábricas que aqui se instalavam. E onde os donos das fábricas, os capitalistas, iriam buscar seus operários? Em trabalhadores rurais, principalmente nos seus filhos. Agricultores eram expulsos da terra pela pressão de fazendeiros, madeireiras, mineradoras, pela falta de uma política agrícola de valorização de seus produtos e por não terem as condições mínimas de adotar ou de enfrentar as novas tecnologias, ou as novas máquinas de preparar a terra, semear, colher, tirar o leite, aplicadas à agricultura e à pecuária .
Trabalhadores também emigraram da Europa porque lá já não possuíam terra para plantar; saíam de suas comunas, de seus países, trazendo apenas uma bagagem de filhos e de sonhos para chegar aqui e encontrar a terra cativa pela Lei de Terras aprovada em 1850 . Eram empurrados para as fazendas e fábricas. Muitos dos agricultores familiares brasileiros, que ainda hoje lutam pela terra, são seus descendentes.
Mais uma vez um modelo de desenvolvimento identificado com o crescimento econômico e direcionado para a exportação excluiu os trabalhadores e trabalhadoras de seus resultados, depois de explorar o seu trabalho. O desenvolvimento que foi prometido pela "revolução verde", associado ao processo de industrialização baseado na "substituição de importações", trouxe consigo a expulsão da terra de milhões de famílias de agricultores , o aumento do latifúndio, das doenças e mortes causadas pelo uso inadequado dos pesticidas e em conflitos de terra, e a perda de conhecimentos que eram transmitidos de geração à geração, através do trabalho agrícola familiar. Para isso muito contribuiu a escola enquanto disciplinadora de crianças e jovens para o emprego assalariado nas fábricas e fazendas e como transmissora de uma visão de mundo que negava o trabalho e os saberes dos agricultores e agricultoras. É o que veremos mais adiante.
Esse desenvolvimento medido em crescimento econômico, que exclui os trabalhadores e trabalhadoras de seus resultados, esse desenvolvimento que planeja e incentiva somente a produção agrícola para fora do país e que, pela negação de uma política de valorização dos produtos que vêm da agricultura familiar, acaba por expulsar famílias de agricultores de suas terras, principalmente devido à falta de terra para plantar e de perspectivas de trabalho para os jovens, não é, definitivamente, aquele que queremos.
No final dos anos 70, a pressão de movimentos sociais internacionais, organizados em defesa do meio ambiente, obriga os capitalistas a repensarem o desenvolvimento. De olho nos custos de produção também perceberam os industriais, fazendeiros e banqueiros, que gastavam mais energia para movimentar as máquinas do que a energia resultante dos alimentos que, com o uso destas máquinas, produziam . Entretanto, o "discurso oficial" do desenvolvimento sustentável, pronunciado pelos capitalistas, é apenas uma carta de intenções que não altera as relações sociais de produção baseadas na propriedade privada da terra e dos meios de produção e na exploração da força de trabalho de homens, mulheres e crianças. Define o desenvolvimento sustentável como "satisfação das necessidades de uma geração sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer suas próprias necessidades" . Podemos até perguntar quais as gerações que terão suas necessidades satisfeitas ou que serão alimentadas, quando sabemos que cerca de dois bilhões de pessoas no mundo, ou seja, um terço da humanidade, vive na miséria e passa fome .
Essa proposta liberal de desenvolvimento sustentável, que vem dos representantes do capital, não explica nada nem se compromete, porque hoje são os países ditos "desenvolvidos" os que mais consomem, os que mais gastam energia, os que mais poluem o meio-ambiente, embora acusem os agricultores familiares de promover o desmatamento, de poluir as águas, de produzir erosão e desertificação pelo uso inadequado da terra, exigindo, então, o controle sobre o que produzem os países pobres .
O desenvolvimento social é aquele que propicia as condições ou que cria um ambiente para que o desenvolvimento econômico a ele subordinado seja criador de riquezas que correspondam às demandas da maioria da população . Por sua vez, o projeto popular de agricultura sustentável está amarrado a um projeto de desenvolvimento social, cultural, econômico, que esteja sustentado em relações democráticas e solidárias. Mas ele não está pronto. Ele vem sendo construído nos movimentos sociais populares, nas lutas dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, em todo o país. Podemos, apenas, dar alguns indicativos para depois falarmos do papel estratégico que a escola básica do campo desempenha na construção deste projeto.
Um projeto popular para o Brasil é necessário, é justo e é viável; nele está incluído "um projeto de desenvolvimento do campo". Este projeto popular de sociedade brasileira, construído pelos movimentos sociais populares, está fundamentado em cinco princípios: a soberania, a solidariedade, o desenvolvimento, a sustentabilidade e a democracia popular .
O "discurso oficial" do capitalismo sobre o desenvolvimento sustentável tem como referência apenas o meio ambiente que não respeita, deixando de considerar os seres humanos como integrantes e integrados nesse ambiente. O liberalismo sempre entendeu o desenvolvimento subordinado à economia e tratou a natureza apenas como um bem de capital. O neoliberalismo tem radicalizado uma postura totalitária de naturalização das desigualdades sociais e da pobreza, manifestando absoluto desinteresse pelo que possa acontecer à maioria dos seres humanos ou ao planeta Terra. A maior prova disso é a negação dos EUA de assinar o acordo de proteção e preservação ambiental, de Kyoto (Japão, 2001), justificando, o Presidente Bush, que as empresas americanas não poderiam abdicar de seus lucros.
Esse pretenso desenvolvimento, a cada dia que passa, deixa de fora do mundo da produção um número cada vez maior de trabalhadores e trabalhadoras, principalmente jovens, condenados a não terem nem terra nem trabalho, nem direitos sociais. Em confronto com este modelo, os movimentos sociais populares vão gerando, em suas práticas, algumas alternativas de desenvolvimento. Nessas práticas, que se movem na contra-mão do desenvolvimento capitalista, podemos enxergar e até começar a pensar que um projeto popular alternativo de desenvolvimento e de agricultura, deva ser "socialmente justo, economicamente viável, ecologicamente sustentável e culturalmente aceito . Não estamos pensando que os agricultores, as agricultoras e seus filhos devam renunciar ao emprego de tecnologias que facilitem o trabalho agrícola, que diminuam o tempo de trabalho, que ampliem e embelezem a produção. Porém, tecnologias que considerem a questão ecológica e, ao mesmo tempo, aliviem a penosidade do trabalho com a terra precisam ser inventadas. E já estão sendo inventadas algumas. Basta aproximar e combinar, através do diálogo como nos ensinou Paulo Freire, os saberes milenares da experiência no trato com a terra, que possuem os agricultores e agricultoras familiares, e os conhecimentos e técnicas produzidos pelas escolas agrícolas, pelas instituições de pesquisa e pelas universidades.
O campo precisa de técnicos em nível superior e médio que tenham compromisso com um projeto popular de agricultura ecológica e sustentável. Eis aí onde entra o papel estratégico que pode desempenhar a escola básica do campo, contribuindo para formar pessoas autônomas, preparadas para participar da vida política de seu município e de seu país, para formar técnicos comprometidos com um projeto popular de sociedade e com uma agricultura ecológica sustentável e para produzir conhecimentos e tecnologias que sejam do interesse do movimento social dos trabalhadores e trabalhadoras do campo.
Mas esta escola básica do campo, comprometida com um projeto popular de sociedade e de agricultura, precisa ser conquistada, precisa ser ocupada, quem sabe deva até ser inventada, porque os modelos de escola primária rural que a história registra sempre estiveram associados à "penetração do capitalismo no campo" , à modernização da agricultura e à expulsão das famílias de agricultores de suas terras.
É verdade que também tivemos muitas escolinhas isoladas, por este Brasil e Rio Grande do Sul a fora, com classes onde se misturavam meninos e meninas de diferentes séries e níveis de aprendizagem, nas quais professoras que haviam freqüentado o antigo curso primário ensinavam a ler, a escrever e a contar. Nos horários em que não estavam ensinando na escola, essas professoras eram donas de casa e agricultoras, trabalhando em suas roças e em suas hortas ou lidando com vacas de leite e com a pequena criação de porcos e galinhas. Na luta pela construção de uma escola básica do campo seria importante que, na nossa comunidade, fizéssemos projetos de pesquisa que resgatassem histórias de escolas rurais e de suas professoras a quem muitos e muitas devem hoje o que aprenderam, no pouco tempo que tiveram para freqüentar uma escola.
Grande parte dessas escolas foi substituída pelo transporte escolar, que leva definitivamente os filhos dos agricultores para as cidades. Se sabemos que as crianças e jovens agricultores desempenham tarefas em casa e aprendem no trabalho, daí porque esta agricultura é chamada "familiar", podemos concluir que a destruição das escolas rurais, substituídas pelas escolas-polo ou escolas-núcleo, pode ser mais uma estratégia para deixar essas crianças e jovens agricultores sem escola ou, mesmo freqüentando-a, negar-lhes todo o potencial de conhecimento que ela é capaz de oferecer. Muitos desses jovens e crianças chegam cansados à escola porque perdem mais tempo andando pela estrada até chegar ao ponto de ônibus e viajando para ir e voltar à/da escola, do que mesmo dentro da sala de aula, aprendendo o que quer que seja. Isso quando não chove, porque em tempos de chuva as estradas ficam quase intransitáveis . Entre o trabalho que garante a subsistência da família e a escola, que exige viajar tantas horas para pouco aprender, qual poderá ser a escolha desse filhos e filhas de agricultores?
Não se quer dizer que um meio de transporte que permita a comunicação das pequenas propriedades e dos assentamentos de trabalhadores rurais entre si e com a sede do município não seja necessário, não seja importante. A comunicação, o transporte e boas estradas são reivindicações históricas dos agricultores ; o que se quer denunciar é que essas reivindicações, que também não são atendidas, não substituem a escola, a presença de uma escola básica do campo como um espaço público de formação e de produção de conhecimento, como um centro propiciador do fortalecimento da cultura local articulada aos desafios que vêm da sociedade como um todo, da aldeia global.
Um modelo de escola para o meio rural, dentro do movimento chamado "ruralismo pedagógico", foi produzido pela política de colaboração entre o Governo de Getúlio Vargas, a partir dos anos 30 do século passado, e os interesses dos EUA, para manter sob controle os conflitos no campo, para impedir o avanço dos movimentos revolucionários inspirados na Revolução Russa, e para criar um mercado consumidor das máquinas e pacotes agrícolas das indústrias norte-americanas .
Para isso, houve uma preocupação muito grande com a escola primária, com a formação de seus professores, com a montagem de programas, instituições e instrumentos de divulgação para desestruturar a produção agrícola familiar, os saberes e a cultura que a sustentavam.
Difundiu-se, então, o mito do agricultor atrasado, que não cultivava hábitos de higiene, que não gostava de mudanças... Monteiro Lobato ajudou a fixar este mito ao criar a figura do "Jeca Tatu", em que destacava apenas o desânimo, a preguiça, a sua afirmação de que "não pagava a pena" trabalhar. A descrição do Jeca Tatu era a de um caboclo, "acocorado desajeitadamente sobre os calcanhares, a puxar fumaça do pito, atirando cusparadas para os lados" .
Técnicos e clubes agrícolas se encarregariam de ensinar os agricultores a plantar com novas técnicas e a adotar hábitos de higiene. Às universidades, às escolas técnicas e aos funcionários técnicos do Estado, ou seja, a todas as instituições de ensino e pesquisa e de políticas públicas dirigidas à agricultura caberia estender os conhecimentos e as novas técnicas agrícolas aos agricultores, tratados como ignorantes, como depósitos vazios de conhecimento, ou pior, cheios de conhecimentos arcaicos que precisavam ser apagados da memória. Aplicavam, assim, esses técnicos, uma educação bancária e autoritária, como denunciou e criticou Paulo Freire em várias de suas obras .
Clubes agrícolas reuniam os pais e os alunos para apreciarem a demonstração das novas técnicas de plantio, de adubação, de preparo da terra, de uso das sementes selecionadas e dos defensivos agrícolas, feita pelos técnicos agrícolas. Com isso confrontava-se o saber ancestral dos agricultores, tido como atrasado, com o conhecimento científico que, segundo técnicos e professores, viria a contribuir para o desenvolvimento do país e para uma maior produtividade das lavouras.
Professoras rurais, em sua grande maioria, eram "leigas" por terem freqüentado apenas o curso primário e por não possuírem uma formação específica para ensinar. A essas professoras tanto podia ser oferecido um curso de especialização com materiais didáticos em inglês e em outras línguas, como o que foi feito em 1949 , como poderiam ser oferecidos, o que ocorreu mais tarde, os cursos normais rurais. Estes cursos, baseados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 4.024/61, exigiam apenas o curso primário como pré-requisito para a formação de regentes de ensino, que só poderiam lecionar na zona rural. Enquanto isso, já as escolas normais, que preparavam professores para as escolas urbanas, exigiam como base o curso ginasial, pós-primário, para ingresso. Fica clara, então, a diferença de tratamento e de qualificação entre a escola rural e a escola urbana. Esta diferença se acentua se pensarmos que a cultura transmitida pela linguagem das professoras, pela organização do currículo e pelo livro didático era a cultura urbano-industrial enquanto cultura dominante. Criar novos hábitos culturais para o consumo dos pacotes agrícolas americanos, ou seja, tornar os agricultores dependentes dos adubos, dos venenos, das sementes e dos créditos, exigia que se destruíssem os costumes e as crenças, mas principalmente os saberes dos agricultores familiares. Para isso a escola primária teve um papel decisivo .
A eliminação das escolas isoladas, multisseriadas, é coerente com uma política orientada pelo cálculo do custo-aluno, condizente com a política de valorização das grandes propriedades, da agricultura intensiva, dos pacotes tecnológicos impostos pelas multinacionais, que experimentam suas pesquisas em nossas terras, de eliminação dos direitos trabalhistas e de seguridade social, com a opção pelo endividamento externo que acaba com a nossa soberania. Nesse projeto neoliberal de desenvolvimento para poucos, a educação fundamental é entregue aos municípios, deixando de incluir recursos para a Educação Infantil e a Educação de Jovens e Adultos ; o ensino médio fica a cargo do Estado; as escolas técnicas são desmontadas; a Educação Profissional transforma-se em treinamento para o desemprego, as universidades públicas lutam mas vêm perdendo a guerra contra a privatização do ensino superior.
A construção do projeto popular de desenvolvimento, de uma agricultura ecológica que combine o conhecimento científico e tecnológico com os saberes ancestrais do trabalho agrícola, e, por fim, uma escola básica do campo como uma condição estratégica para a conquista e a consolidação deste projeto popular e deste modelo agro-ecológico sustentável é uma luta. Eu até arrisco a dizer que é uma guerra e que já estamos nela há muito tempo. Mas antes de falar sobre o caminho da luta, vamos tentar refletir um pouco sobre a escola básica do campo, que queremos, desenhar um pouco os seus contornos, projetando as esperanças que nos unem na luta comum por uma escola pública competente porque democrática.
Então, que escola básica do campo é esta que queremos?
Os agricultores e as agricultoras, sejam eles também pescadores ou pequenos criadores, sejam eles brancos, negros, índios, amarelos ou uma mistura de raças que nos caracteriza como brasileiros e nos enriquece culturalmente, são todos eles e elas, trabalhadores da terra. Trabalham com suas famílias, onde o trabalho é, ao mesmo tempo, a fonte da subsistência, o manancial que alimenta a cultura, e a escola de formação dos novos agricultores e agricultoras.
São esses agricultores e agricultoras familiares, sejam eles e elas pequenos proprietários individuais, sejam eles e elas assentados, sejam eles e elas indígenas, sejam ou não cooperativados, trabalhando ou não em regime de cooperação, são as crianças e os jovens agricultores, são seus professores, são todos eles e elas os sujeitos sociais interessados, os sujeitos diretamente envolvidos na construção da proposta de escola básica que, de modo algum, poderá ser feita por decreto.
Todos os agricultores, os individuais, os cooperativados, os pequenos proprietários, os assentados, os indígenas precisam, mais do que nunca, qualificar a sua produção. Precisam, então, de técnicos em gestão e planejamento de custos, de técnicos em cooperativismo, de técnicos em pesquisa agropecuária, de técnicos em uma agricultura e em uma pecuária e pesca ecológicas, que conheçam as suas realidades, as possibilidades produtivas dos solos e das águas, a viabilidade da aplicação dos recursos, as exigências e as possibilidades de mercado para a produção, as necessidades colocadas pelas comunidades às quais estão integrados. Precisam de técnicos em nível médio e superior - que são também trabalhadores – enraizados em suas localidades, que sejam capazes de articular a sua experiência de trabalho agrícola, o conhecimento aprendido dos pais e avós na lida com a terra, com o tratamento científico que é dado às questões colocadas por este conhecimento, pelas escolas técnicas, instituições de pesquisa e universidades. Como trabalhar com a terra, os rios, as florestas, os animais e as plantas cultivadas de uma maneira ao mesmo tempo integrada e integradora, que preserve os solos, as águas e as árvores como patrimônio das gerações que virão, que seja produtiva e menos penosa para os trabalhadores e trabalhadoras?
Esta escola formadora de homens e mulheres, que não separa o trabalho e a formação, que se articula com a produção, o meio ambiente e o mercado, que se constitui em um polo cultural, em espaço integrado e integrador de experiências, de aprendizados, de participação, de produção de novos conhecimentos, de constituição de identidades indígenas e camponesas, pessoais e coletivas, na luta por direitos e contra a discriminação e a opressão, esta é uma escola estratégica para desenvolver o campo na perspectiva de uma agricultura ecológica e sustentável. Esta é uma escola para integrar campo e cidade sem subordinação nem da cidade nem do campo. Esta é uma escola para enraizar ainda mais os jovens em sua realidade, para formar homens e mulheres em compromisso com seu trabalho, sua cultura, sua vida, sua comunidade, um compromisso com um mundo em que haja justiça, solidariedade, democracia, respeito à diferença na igualdade de condições de vida, trabalho e participação política.
Ninguém quer pedir aos jovens que ignorem ou deixem de sonhar com as coisas novas, os direitos proporcionados pela vida nas cidades. Mas eles precisam ter acesso também ao conhecimento sobre a violência produzida nessas cidades, que não podem ser objeto de uma visão romântica ou de telenovela. Estatísticas divulgadas pelos meios de comunicação mostram a diminuição da população de jovens do sexo masculino, o que acontece apenas em países em guerra . A maioria desses jovens estão sendo recrutados a partir dos 8 anos para atuarem no tráfico de drogas e são eles as maiores vítimas de assassinatos e chacinas.
Jovens trabalhadores e trabalhadoras rurais são sujeitos de direitos, portanto, a sua escola deve proporcionar uma sólida articulação entre a comunidade local e a sociedade global, de modo que os jovens possam ter acesso à comunicação, às informações, aos conhecimentos que a informatização globalizada hoje permite.
Uma escola básica do campo, me parece, deve corresponder a uma escola básica da cidade, móvel de luta dos movimentos sociais urbanos, porque os filhos dos trabalhadores urbanos, da mesma forma que os rurais, carecem de condições mínimas para permanecer na escola, deixando-a, na maior parte das vezes, a partir da 5ª série do ensino fundamental. A escola que temos, seja na cidade seja na zona rural, ainda precisa aprender muito sobre o mundo do trabalho, sobre suas relações e sua cultura. O mundo do trabalho até hoje não tem entrado nos cursos onde se formam os professores e as professores para a escola básica. Depois de formados professores e professoras precisam aprender a enfrentar os desafios que vêm daqueles alunos que trabalham ou que têm suas famílias desestruturadas pelo desemprego dos pais, ou ainda, que estão envolvidos com drogas porque, explicam, o tráfico paga melhor do que os empregos convencionais...
Como já afirmei antes, o desenvolvimento sustentável, a agricultura ecológica e a escola básica do campo não estão prontos à nossa espera, não saem prontos das nossas cabeças para a realidade e não serão construídos sem luta, muita luta , porque eles, o desenvolvimento social, a agricultura ecológica e a escola básica do campo e também da cidade, na perspectiva de um projeto popular de sociedade brasileira, solidária e efetivamente democrática, não agradam aos banqueiros, aos grandes proprietários de terra, aos industriais e aos políticos que defendem seus interesses no Congresso, nas assembléias legislativas e nas câmaras de vereadores. Todos eles, banqueiros, industriais, grandes proprietários e políticos tradicionais se beneficiam e enriquecem com a pobreza e a ignorância do povo e com a apropriação dos recursos do Estado, principalmente os banqueiros e as multinacionais, que se alimentam da nossa dívida externa, que querem mais privatizações, menos direitos trabalhistas. Condicionada pelas exigências do Banco Mundial a política educacional adotada pelo MEC separa o Ensino Médio da Educação Profissional, justificando que esta deva estar voltada para a "empregabilidade", tendo em vista as mudanças nos processos produtivos. É uma forma de oferecer treino em lugar de formação e de responsabilizar os trabalhadores pelo desemprego, pelo fato de não terem as competências exigidas pelo mercado de trabalho.
Os portugueses que aqui chegaram tomaram as terras dos índios, exterminaram muitas nações indígenas e a outras escravizaram; também trouxeram negros africanos para serem escravos de fazendeiros. Desde essa época, a terra tem sido um móvel para a luta e a organização dos trabalhadores. Depois os fazendeiros e industriais importaram outros agricultores sem terra, de diversos países da Europa, porque lá já não havia mais terra de trabalho. Alguns poucos enriqueceram, mas muitos tomam parte na luta pela terra que está presa ao latifúndio improdutivo. Trabalhadores brasileiros sem terra ou com pouca terra lutam hoje pela terra de trabalho e de vida, por uma política agrícola que lhes permita viver da terra, com a família e com dignidade. Enfim, lutam por uma autêntica Reforma Agrária .
Trabalho também é luta ou labuta. Mas a luta é também a organização, o encontro, a caminhada, os símbolos, os cantos, as danças, o abraço, a mística que une as famílias, resgatando e alimentando a memória do povo – que é o novo sujeito histórico - em luta. A luta é aprendizado de novos modos de ser e de fazer a sociedade ; a luta é também pela produção de um saber técnico comprometido, que junte os saberes históricos acumulados pelos agricultores em suas lidas seculares com a terra, com o conhecimento que decorre das experiências científicas realizadas nas escolas técnicas, nas instituições de pesquisa e nas universidades. A luta é, ainda, uma luta política de participação nas instâncias de cidadania, na elaboração dos orçamentos que nos interessam, na produção das leis que nos interessam. É esta uma luta pedagógica porque ensina a levantar a cabeça e a buscar, com as próprias forças, os caminhos da emancipação; é uma luta que constrói sujeitos participantes, sujeitos políticos, sujeitos sociais, por isso entra na escola para exigir que os conhecimentos ensinados, que a organização desses conhecimentos em disciplinas e em planos pedagógicos, que a formação dos professores e professoras levem em conta duas realidades: de um lado, o mundo do agricultor, o mundo local, o seu trabalho, as suas crenças, os seus costumes, os seus valores, a sua ética solidária e cooperativa de onde parte o diálogo para a produção do conhecimento novo; de outro, a realidade global, as novas descobertas científicas, as novas tecnologias, os direitos sociais, as diversões e também as questões que o mundo discute, a ecologia, a violência das cidades, o tráfico de drogas, a prostituição infantil, a poluição pelo excesso de automóveis. As realidades local e global articulam-se dialeticamente na produção do novo conhecimento que dá sustentação à formação básica.
Então a escola é um lugar de luta, também, onde se discute o desenvolvimento que queremos, onde se pode ensinar e aprender para o desenvolvimento que queremos, onde é possível construir valores de solidariedade, justiça e democracia, onde se pode propor o modelo de sociedade democrática e popular que queremos, onde se irão formar os professores, os técnicos, os graduados, os pais e as mães de família para esta sociedade que queremos. Nos primeiros anos 30 até os anos 70 do século passado, a escola primária rural despenhou um papel fundamental para a expansão do capitalismo no campo brasileiro, abrindo caminho para a dependência do agricultor e para a expropriação da terra. Agora ela precisa desempenhar um papel estratégico dentro de um projeto popular de desenvolvimento; a realização deste papel estratégico está em nossas mãos. Os agricultores e agricultoras, aos quais tem sido sonegado historicamente o conhecimento, a terra de trabalho e de vida, precisam estar à frente nesta luta, exigir esta escola, fincar seus alicerces. Cabe a nós professores, enquanto trabalhadores em educação, nos engajarmos também nessa luta e ajudarmos a fazer realidade a escola básica do campo que todos queremos. A coragem de educar confirma a proposta de "uma escola de trabalho, uma escola de povo, uma escola de luta" .
É na retomada, pela família, de seu papel educador; pela escola, do espaço público que lhe cabe para a produção de conhecimento e a irradiação de uma cultura popular que une, que constrói redes de solidariedade; pelo Estado, de seu papel de promotor de políticas públicas construídas socialmente e que venham ao encontro das demandas populares, é nesses processos contraditórios e ricos de participação popular que agricultores e agricultoras, que adultos, velhos, jovens e crianças, que brancos, índios, negros e mestiços, junto com outros trabalhadores e trabalhadoras, vão construindo os projetos de sociedade, de desenvolvimento, de agricultura e de educação básica do campo, que todos queremos. E então, o que estamos esperando? Vamos à luta, companheiros e companheiras!

Um comentário:

  1. gostaria de saber em que ano e editora este texto foi editado, ou se nao foi, onde foi proferido, pra minhas referencias de fonte.
    grata.Ana Claudia

    ResponderExcluir